03.

LADO C — GUIÃO

DA VONTADE DE IR EMBORA

(terceira figura do defeito)

Rogério Nuno Costa [texto]

André Guedes [obra visual só disponível na edição física do livro]

.

[Todas as imagens contidas neste documento da autoria de ©José Luís Neves]

.

“O indivíduo quer-se um mundo.”

(Augé, p. 35)

.

[O espectáculo começa quando os espectadores chegam a casa. Encontro-me na cozinha, a terminar a confecção da refeição que lhes vou servir. […] Dentro de casa já se encontram o artista e o observador convidados. Os casacos e as malas são colocados num dos quartos. Os espectadores são convidados a entrar na sala e a sentarem-se à mesa, atravessando para tal uma linha no chão com a inscrição “THINKING AREA”, desenhada com fita-cola de papel. O ambiente geral é o do aparato de um jantar sofisticado instalado no meio de um estaleiro em obras. Cada pessoa tem o nome escrito num cartão, colocado em frente ao prato, indicando o lugar onde deve sentar-se. Um projector de vídeo projecta na parede uma imagem com a frase “MY LIFE IN RANDOM MODE”, a partir de um PowerPoint instalado no meu computador. Todos os slides estão ilustrados com imagens dos materiais de trabalho utilizados nas obras em curso, fotografados por José Luís Neves. Como som de fundo, ouvem-se músicas muito distintas, que se sucedem umas atrás das outras em modo aleatório, a partir de um segundo computador. A refeição é servida. À mesa, estão sentadas 8 pessoas. Durante cerca de uma hora, os comensais conversam e conhecem-se. Finda a refeição, baixo o volume da música e chamo a atenção dos espectadores para o momento que se segue, pedindo-lhes que sejam pacientes e disponíveis — a refeição gourmet por mim preparada terá servido como retribuição da ajuda que lhes vou pedir a seguir. […] Abro um dossier e leio:]

Uma casa em construção, esta, precisa de alicerces vários. Os alicerces não acontecem só no início da coisa, os alicerces espalham-se igualmente pelo resto da coisa. A coisa pode ser só o início da mesma, pode não ter meio nem fim. Ou pode ter o meio e o fim dentro do início. Esta casa está em construção. O objectivo deste nosso encontro é justamente construir os alicerces de uma vida nova, a minha, numa casa nova, esta. O início da construção não tem fim. O início da construção é sempre o fim da construção. Todos nós, aqui presentes, somos o início e somos o fim da coisa. Alicerces pensantes. Primeira pedra. Corte da fita no dia da inauguração. Simultaneamente champanhe e pó. Esta casa é o que é, agora. Há-de ser outra coisa, depois. A Sylvie Fleury costuma dizer que “mostra as coisas tal como são, expondo também os instrumentos e mecanismos que fazem delas aquilo que elas são”. O Cerith Wyn Evans costuma dizer que “se interessa vivamente pelas noções de ambiguidade e de desorientação, num deslocamento deliberado do espectador, a fim de abrir zonas de interrogação, fazendo-o duvidar, portanto, daquilo que vê”. O Gabriel Orozco costuma dizer que “é importante para ele que a sua obra seja um subproduto, um amontoado de situações específicas”. O Yutaka Sone costuma dizer que “para ele, o processo é um objecto”. A Ellen Gallagher costuma dizer que “não vai fazer estoirar a vossa membrana com uma imagem estimulante”. Eu costumo dizer que também não. […] A ordem dos trabalhos para os próximos 70 minutos é extensa e exige de todos os participantes a máxima disponibilidade intelectual.

[É orientada uma mini-sessão de relaxamento e concentração, durante a qual os espectadores permanecem com os olhos fechados e de mãos dadas, respirando de acordo com as directivas do instrutor. Finda a sessão, são distribuídos lápis e folhas de papel com o esquema que servirá de esqueleto ao espectáculo: o formulário de candidatura ao Programa de Apoio a Projectos Pontuais do Instituto das Artes/Ministério da Cultura de 2006, ao abrigo do qual o presente espectáculo terá sido apoiado. Os espectadores são convidados a tirar notas.]

“Vou A Tua Casa”. Título-acção. Gosto de títulos com verbos conjugados dentro. Títulos-narrativa. Frases completas: nome (neste caso, subentendido…), verbo e complementos. Títulos totais que dizem tudo. Títulos literais. Não me interessam os títulos poéticos, líricos, criativos, imaginativos ou surreais. Por exemplo: em vez de “Vou A Tua Casa”, “Casa Oblíqua, Espelho de Mim”. Como também não me interessam os títulos ocos, fechados, encriptados, finais ou fugazes. Por exemplo, em vez de “Vou A Tua Casa”, “Casa”, apenas. Mas podia ser qualquer coisa do tipo documental. Por exemplo: “Projecto de Visitação”. Como também podia ser qualquer coisa ironicamente teórica. Por exemplo: “Sobre A Maior Ou Menor Domesticidade De Um Projecto Teatral”. Podia. Mas, de facto, não é. “Vou A Tua Casa”-título é o antípoda perfeito da comida que preparo. Quando cozinho, nada é literal; tudo acontece em função de uma qualquer raiz alquímica, que pretende ser perfeita no seu lirismo feito de simbologias várias. Devaneios alquímicos devidamente controlados por regras de temperatura, tempos de cozedura e graus de acidez. Não improviso, invento, o que é bastante diferente. Preocupo-me com as cores e dou uma importância extrema à apresentação. Ao invés, o “Vou A Tua Casa”-título é uma coisa monocromática, por vezes desenxabida, demasiado inacabada, pouco cuidada na sua apresentação. Duas coisas diferentes? Duas coisas iguais? A mesma coisa apresentada de maneiras diferentes? Coisas diferentes apresentadas da mesma maneira?

“Lado C”. Uma coisa que é uma terceira coisa: A — B — C; 1 — 2 — 3… Três é o número da criação. C pode ser: cozinha, comida, casa, calor, companhia… “Lado C” porque existe um “Lado A” e porque existe um “Lado B”, e eu achei que deveria haver aqui uma coisa que não existisse. Os discos! Os discos só têm dois lados; as moedas também. Digamos que a totalidade do disco e a totalidade da moeda, diria melhor, aquilo que faz do disco e da moeda uma coisa, é sempre uma terceira moeda, é sempre um terceiro disco, uma realidade terceira, um lado c. “Lado C” não tenciona explicar o “Lado A” e o “Lado B”. “Lado C” é, de facto, o “Lado A” e o “Lado B”. “Lado C” é o número final de uma coisa tri-partida, mas não é o fim, é o início. Retrospectiva: no “Lado A” eu vou, de facto, à tua casa. No “Lado B” não chego a tempo: tu apanhas-me no caminho. No “Lado C” não chego a sair: tu chegas primeiro, ou então sou eu que desisto… Deste ponto de vista, “Lado C” poderá parecer o fim da narrativa. Eu gostaria de explicar, durante o tempo desta nossa reunião, porque é que eu acho que o “Lado C” é, de facto, o início da narrativa.

Chorar de desgosto e rir de entusiasmo podem ser exactamente a mesma coisa. Quando o comboio pára numa estação onde duas pessoas se abraçam, é difícil perceber se se trata de um abraço de despedida ou se de um abraço de reencontro. Entre o tudo e o nada pode existir uma distância de anos-luz. Entre o tudo e o nada pode existir o espaço que me separa de vós, esta mesa. Ou este nada. [O artista agarra na mão do espectador sentado ao seu lado direito e aguarda cerca de 5 minutos, para depois largar a mão.] O comboio arranca repentinamente e não tivemos tempo de apurar a verdade…

O 3, como número da criação, implica que haja um percurso de emersão, que começa num primeiro momento ainda subterrâneo, logo ingénuo, onde tudo se encontra amparado por um excesso qualquer de líquido amniótico, contra ventos, marés e pontapés na barriga (exemplo: eu vou a tua casa e tu deixas-me fazer de conta que eu estou muito emocionado por estar aqui). O percurso de emersão segue depois num segundo momento, de grande dureza sensitiva, em que da terra começam a brotar os primeiros rasgos de lucidez (exemplo: tu agarras-me por um braço na rua e juntos decidimos percorrer um caminho qualquer feito de partilhas várias). O terceiro momento seria este: um momento em que se aprende a dizer a palavra trilogia — três vezes logos, três vezes palavra, pensamento e acção. Carneiro, Touro e Gémeos, que sou eu: nasci no dia 17 de Junho de 1978, numa terra verde cheia de montanhas à volta e atravessada por dois rios gélidos. Nessa terra, separada de nós por 5 horas de autocarro, 4 de comboio e 3 de carro, encontram-se as bases teóricas da grande maioria das coisas que digo. Por exemplo: no “Lado A”, faço eu; no “Lado B”, fazemos os dois; no “Lado C”, vens a minha casa e fazes tu. Trilogia, portanto. Ou a mesma palavra conjugada três vezes em três situações temporais diferentes: Carneiro, Touro e Gémeos. Eu sou Gémeos. “Lado A” és tu. “Lado B” somos nós. “Lado C” sou eu.

Vens a minha casa e fazes-me.

Diário do “Lado C”. 29 de Maio de 2005. Cheguei a Lisboa em 1996 e inventei a seguinte história: um rapaz e uma rapariga apaixonam-se a bordo de um avião e decidem ficar para sempre juntos no aeroporto, para não terem que desistir de um sonho a favor das vidas de cada um. Tenho a sensação que durante os últimos 10 anos, desisti sempre dos sonhos a favor de vidas de cada um. Da minha, em particular. Comecei a fazer espectáculos (leia-se: comecei a vampirizar a minha vida a favor de uma vontade qualquer de me tornar público) em 2002, a ver se a tornava (a vida) mais particular, mais singular, mais minha. Espectacularizando a vida, coloco-a no mesmo patamar do sonho. Mas ela não é nunca “o” sonho. É antes um revisionismo de sonho adiado, ou desistido. Lisboa, durante os últimos 10 anos, colocou-me sempre perante a insistência do adiamento e perante a insistência do desistido: 10 anos a fazer de conta. Por exemplo: venho para Lisboa com 18 anos porque tenciono saber o que significa viver numa grande cidade — até à data só sabia o que era viver num grande campo. Chego a Lisboa e tenho mais do mesmo. Constato: campo por campo, acho que prefiro o original.

Amares, 29 de Maio de 2005. Concelho situado entre os rios Homem e Cávado, junto às faldas da Serra do Gerês. O clima é suave, apresentando moderada amplitude térmica. Relativamente à pluviosidade, o número de dias de chuva por ano é de 179 dias. Com base nestes valores, poder-se-á dizer que a pluviosidade média anual é das mais elevadas do território minhoto e bastante superior à média verificada em Portugal Continental. Depois de um passeio por terras de Sá de Miranda, irá sentir o aconchego bem típico das gentes minhotas, e usufruir de um vasto cardápio de paladar caseiro que compreende, entre outras, as seguintes sugestões: papas de sarrabulho, rojões à “Minhota”, cozido à “Portuguesa”, arroz de pato, bacalhau à “Abadia”, pastéis de bacalhau, pataniscas de bacalhau, perna de porco assada no forno, cabrito assado no forno, leitão assado no forno, vitela assada e arroz “pica no chão”. Para sobremesa, o concelho de Amares propõe: leite creme queimado, pudim de laranja, arroz doce, mexidos ou formigos, rabanadas, pêras bêbedas, bolo rei, pão de ló, doces de laranja e de romaria e a suculenta laranja ao natural. É nos meses sem “R”, ou seja, de Maio a Agosto, que a laranja de Amares se torna mais saborosa. A cultura das videiras, associada à sabedoria do Homem e à tradição, levaram à criação do Vinho Verde, único no mundo. Tomado como um dos mais importantes aliados da gastronomia, o Vinho Verde deve servir-se fresco. Quanto aos velhos parados nas paragens de autocarro, estão lá desde sempre. São os mesmos desde 1978, desde 1981, desde 1984, desde 1989, desde 1992. Ficam nas paragens para sempre, tal como o casal que eu inventei para Lisboa. Mas enquanto que em Amares as pessoas, de facto, acreditam que o mesmo velho pode estar de 1978 a 1996 a pensar na triste vida que leva desde que nasceu (numa altura em que o cheiro da bosta e os guinchos das vacas abafavam os ruídos longínquos das guerras mundiais, dos foguetões na Lua e do rock ‘n’ roll), em Lisboa obrigam-me a um relativismo realista que a mim sempre me pareceu um tudo ou nada contra-natura… Absurdo: o casal que decidiu ficar para sempre no aeroporto, ficou para sempre no aeroporto! Vira-se a página e temos a contra-capa. Se queres mais, voltas ao início. A história acaba assim. Em Lisboa, acham sempre que eu desisto de contar a história. Em Amares, as pessoas acreditam que as histórias são mesmo assim, tal como acreditam que há lobisomens que descem as encostas do Gerês a caminho das casas das mulheres virgens. Ontem, um amigo disse-me que ouviu da boca do João César Monteiro que este não queria ser o Murnau, antes desejava ardentemente ter a felicidade do marido da sua porteira. Eu também não quero ser o Brecht. Quero ter uma vida. Tão grande quanto os níveis de pluviosidade do concelho de Amares. Lisboa não é tão grande quanto os níveis de pluviosidade do concelho de Amares. Quanto o frio de Amares. O cheiro a frio de Amares. Em Lisboa, às vezes, meto-me para dentro das igrejas ou das basílicas mais gélidas, para me esquecer de qualquer coisa, ou então para me lembrar que tive uma educação católica com direito a baptismo, primeira comunhão, comunhão solene e crisma. Costumo rezar e pedir protecção para os problemas da vida. Qualquer barulho faz-me um eco apocalíptico na alma, mas ainda me lembro de tudo. Das rezas todas. E das regras todas. E depois, nada pode acontecer dentro de uma igreja, porque já tudo aconteceu. Está tudo ocupado e finalizado. Fechado. Nenhum espaço em branco. Qualquer outra coisa seria pecado. A minha catequista da franja e do rancho folclórico “As Lavradeiras” da Casa do Povo de Amares assim o diria. As casas do Senhor são iguais em todo o lado. Graças a Deus. Era tão bom se Lisboa fosse uma igreja… Era tão bom se pudesse ser eu o menino do coro, e pudesse fazer o papel do DJ invisível que escolhe a banda sonora, em vez de ter que levar com as pan pipes da Câmara Municipal…

Fim da folha.

Este projecto tem como único propósito melhorar. Tornar-me uma pessoa melhor: mais sensata, mais honesta, mais afável… Recomeçar tudo de novo, ou então acabar tudo outra vez. Duas coisas muito diferentes? Duas coisas muito próximas? Iguais. Na verdade, o que é que separa o último suspiro de processo do primeiro suspiro de resultado? [Pausa de 10 segundos. Olho os espectadores nos olhos. Em 35 espectáculos, nenhum respondeu.] Todos os espectáculos são sempre sobre o processo que lhes deu origem. Eu apenas tento levar isso até às últimas consequências. O formulário de candidatura aos apoios pontuais do Instituto das Artes/Ministério da Cultura é irrepreensível e muito melhor do que qualquer coisa que eu possa lembrar-me de fazer, aqui e agora… [Improviso no momento uma lista de possibilidades; por exemplo: dançar o vira em cima da mesa de refeições, ou matar um dos espectadores com a faca de trinchar e guardar o sangue para fazer um arroz de cabidela a seguir.] 500 caracteres. Mais: este projecto é feito de pessoas reais. Eu sou uma pessoa real. Tu és uma pessoa real… [x7] [Aponto para todos os espectadores, um por um, no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio.] Não me interessa ser digital, ou analógico, ou tecnológico, ou cibernético, ou para-normal. Interessa-me ser real. E estas coisas que faço, faço-as realmente. 1000 caracteres.

[Excerto do documentário sobre a obra de Tracey Emin, realizado aquando da montagem da exposição individual da artista na galeria Modern Art Oxford, intitulada “This Is Another Place” (2002)]. Tudo isto me desinteressa. Tudo isto me interessa. Nada disto me interessa. Em doses milimetricamente iguais. Estas coisas que faço são como os crepes: o primeiro sai sempre mal. Por isso é que eu gosto de estender a coisa no tempo por mais tempo, não vá o diabo tecê-las… Mas tece. Houve experiências conflituosas que nem chá e bolinhos puderam suavizar. É isto um espectáculo? [Pausa de 5 segundos. Em 35 espectáculos, ninguém respondeu.] Quem vai à guerra, dá e leva. Eu dei e levei. Dou e levo de cada vez que me apresento, assim. Se há coisa que me interessa é ser justo. Justo com as pessoas que decidem entrar por uma ou mais portas do projecto. Como as portas estão sempre abertas, pode-se sempre sair; com ou sem aviso, não importa. Este meu conceito de “justiça performativa” é ingrato, pois… Mas quem é que disse que na vida corre sempre tudo como nós queremos? Tenho eu o direito de averiguar da tua [Aponto para um elemento do público, normalmente aquele que me parece mais indisposto por estar ali.] maior ou menor acuidade para estares aqui? Tenho eu o direito de me permitir a usar aquilo que acho que é justo para ti e dar-te aquilo que tu mereces receber? Tu mereces estar aqui? E tu? [x7] [Aponto para todos os espectadores, um por um. Em 35 espectáculos, foram muitos os que responderam afirmativamente à pergunta, de forma mais ou menos intrigada, mais ou menos peremptória, mais ou menos reticente. Hipóteses mais frequentes: “Sim”, “Claro que/obviamente que sim” e “Acho que sim”. Em 35 espectáculos, nenhum espectador disse “Não”. Em 35 espectáculos, 5 responderam “Não sei”.] Eu mereço ter-vos aqui? Eu mereço esta mesa? Estas cadeiras emprestadas? Esta casa? Este chão? Este tecto? Mereço este computador? Este dossier? Este copo? Tu mereces essa folha de papel? Esse lápis? Essa roupa? Esse corpo? Essa vida que tens? Será que mereces a vida que tens? Será que eu mereço estar aqui a olhar para ti? Será que tu mereces estar aí a olhar para mim? Será que tu mereces estar neste espectáculo? [Pausa de muitos segundos.] A porta está aberta…

Todos nos enganamos. É justo enganarmo-nos. A justeza de “Lado C” está em assumir a sua ingratidão e o seu engano. Um primeiro encontro pode ser péssimo; o próximo será melhor. Ou não… Eu não me importo nada de levar porrada: em Outubro de 2004, tive uma conversa em Torres Vedras com uma pessoa importante das artes e da cultura que, incomodada com a excessiva dependência dos meus espectáculos nas expectativas dos espectadores, me perguntava: “Mas porque é que não tens assim uma estrutura fixa, perfeitamente controlada, que possas repetir sempre que as condições não permitem que haja essa aproximação ao objecto que tu desejas? É que parece-me um pouco ingénuo da tua parte acreditares que a validade de um espectáculo possa depender quase exclusivamente da reacção dos espectadores…”. Já não me recordo exactamente do que lhe disse em resposta, por isso resumo-me hoje às palavras da Andrea Zittel: “…Para isso seria designer. O designer tem a responsabilidade de conceber objectos que sirvam o maior número de pessoas, e eu penso que isso não é muito libertador.” Se calhar, e contrariamente à Zittel, eu não gosto nada de pessoas. Mas também gosto muito de pessoas. Lisboa é como uma roupa que me fica mal. Quando saio à rua, sinto-me sempre desconfortável. Aqui, sinto-me bem. Por enquanto. Mas gosto muito, mas mesmo muito, [Faço um semi-círculo com a mão, palma virada para cima, sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, abarcando o grupo completo de espectadores.] de vocês.

É como na vida, é como nos crepes e é como nas peças. Quando ligamos o iTunes e pomos a tocar as músicas que temos dentro do nosso computador em modo aleatório, nunca sabemos qual é a música que vem a seguir, mas sabemos que é algo conhecido. Sabemos que é algo que temos dentro do nosso computador. Eu gosto desta “rotina do imprevisto”, desta falsa e antecipada ansiedade em relação a uma coisa que sabemos exactamente como funciona, sabemos exactamente o que é que vai acontecer a seguir… A vida é uma montanha russa: mesmo sabendo que é aleatório, achamos imensa piada às transições! [Música escolhida aleatoriamente pelo iTunes.]

[Na parede projecta-se um pequeno filme intitulado “Museu Imaginário”, durante o qual uma edição da Phaidon sobre o artista Mark Dion vai sendo folheada por mim. Ao mesmo tempo, a leitura do texto:] 10 de Fevereiro de 2005. E-mail: Em resposta à tua pergunta: o espectáculo não acaba, inscreve-se no tempo, e o “tempo” (este que nos aconteceu) é infinito. Cada um terá agora de fazer o seu fade out, e prosseguir. O futuro mais ou menos enublado reservado àquilo que nos vai acontecer, a mim e a ti, faz parte da coisa. Agrada-me a ideia de um espectáculo infinito. Agrada-me a ideia de pessoas infinitas. Tu és mais um. Poderias ser outro. Poderias ser tu a fazer. O nosso momento especial durou o tempo infinito que teve que durar. Se quiseres que dure mais, sonha comigo! É fácil: basta deitares-te de costas durante meia hora antes de adormeceres, joelhos flectidos, respiração profunda, braços abertos e estendidos na cama, tenta não pensar em nada… E conta Rogérios: 1 Rogério, 2 Rogérios, 3 Rogérios, 4 Rogérios (…). Adormeceste! No espectáculo sem programa, sem aviso de chamada, sem frente de sala, sem rasgar de bilhete, sem início, sem meio e sem fim… Dorme bem! Dezembro de 2005. Respondo ao antropólogo que me pergunta como é que eu acho que as pessoas apreendem o meu trabalho: exijo delas uma grande dose de disponibilidade, de maneira a poderem entrar num território em que lhes é pedido para “pensarem comigo” e não para apreciarem as minhas construções imagéticas, as minhas concepções plásticas ou as minhas conclusões filosóficas… Nesse sentido, eu não tenho rigorosamente nada para dizer, nem me interessa. Mas depois falo demais, digo demais, explico demais. É que de outra forma, o espectáculo não se aguentaria em cima das pernas bambas cuja construção eu próprio desisti de concluir. Não acredito que os trabalhos artísticos digam sozinhos tudo o que há a dizer, não acredito que “já lá está tudo dito”… Isso era há uns bons dois séculos atrás, quando cada quadro continha dentro a energia anímica total do pintor e explicava a razão de ser de tudo e de todas as coisas, de uma forma incrivelmente sólida e intransigente. Os meus objectos são muito pouco objectuais, precisam de ajudas várias para se aguentarem de pé. Hoje! Hoje está tudo por fazer… “Lado C”, em última análise, é sobre a impraticabilidade. Um beco sem saída que só permite que eu olhe para trás e faça o caminho inverso. Qualquer coisa como isto: [Levanto-me da mesa, viro as costas para o público e fico parado durante uns segundos. Começo a andar em direcção à parede mais próxima e jogo-me contra ela com a maior violência de que sou capaz. Meia volta para trás, regresso à mesa.] O espectáculo continua! Paranóia portuguesa: parece que andamos todos à procura do melhor espectáculo, da melhor interpretação, do melhor figurino, da dramaturgia mais sublime, do conceito mais inovador, ou do cartaz com mais logotipos e nos esquecemos de “ver”, de facto… O que é me separa do homem pré-histórico? [Pausa de 5 segundos. Olhar fito nos espectadores. Em 35 espectáculos, apenas um respondeu: “O que te separa do homem pré-histórico é o facto do teu organismo não ser capaz de absorver celulose”.]

Nas inúmeras viagens de comboio Lisboa/Braga e Braga/Lisboa que faço, fico perto de uma pessoa que viaja sentada ao meu lado. Durante duas, três ou quatro horas, eu faço parte da vida daquela pessoa, de facto. Respiro o mesmo ar que ela respira, fico a conhecer os livros que lê, as músicas que ouve, as revistas que compra. Sinto o cheiro da sandes de presunto que ela preparou antes de sair. Oiço a conversa com a amiga que lhe liga do Porto a combinar jantar na Ribeira. Desvendo a forma como ela adormece, como sonha, como disfarça que dorme e que sonha, como cai para cima do meu ombro, às vezes. E às vezes apetecia-me ir com a pessoa para o sítio que a espera, prolongar aquele momento, prolongar-me… Outras vezes não. Mas todas as vezes, todas, sem excepção, fico com vontade de lhe dizer: “Eu fiz parte de quatro horas da tua vida”. De facto.



[No segmento “Identificação da Equipa”, dá-se voz ao observador convidado primeiro e ao artista convidado depois. Ao primeiro é feita uma pequena entrevista filmada, questionando-o sobre a pertinência do espectáculo e problemáticas relativas à participação do espectador. Foram observadores, em Lisboa: Luís Firmo, Nelson Guerreiro, Tiago Bartolomeu Costa, Mónica Guerreiro, Verónica Metello, Cláudia Madeira e José Nunes; em Évora: Telma Santos, Nuno Abreu, António Bexiga e Eduardo Lopes; no Porto: João Costa; em Amares: Nuno Miranda Ribeiro; em Helsínquia: Danai Anagnostou.]



[Ao artista convidado é dada carta branca para ocupar 5 minutos do espectáculo, sem conhecimento prévio por parte do responsável artístico e sem qualquer intervenção mais ou menos censória da parte deste. Foram artistas convidados, em Lisboa: Inês Jacques, Sónia Baptista, Miguel Bonneville, André e. Teodósio, Pedro Penim, Patrícia Portela, Beatriz Cantinho e Mariana Tengner Barros; em Évora: Joana Baptista e Aldovino Munguambe; no Porto: Joana Castro e João Costa; em Amares: Hugo Loureiro e Eva Malainho; em Helsínquia: Sade Risku.]

[Retomo a leitura do texto.] Depois do “Lado C” quero chorar, muito, e ganhar Óscares com isso, por causa de chorar muito credivelmente e muito impressionantemente bem, mesmo com a objectiva da câmara espetada no nariz e o cinema inteiro realmente interessado mais na história e menos nas imperfeições da pele. Por outras palavras: estar ao pé de ti, perto de ti, muito perto de ti, e tu reparares em mim. Na verdade, o que eu quero mesmo é conhecer-te melhor. Saber se te predispões a cair de sono para cima do meu ombro, ou se foges a sete pés para dentro de outro comboio qualquer. O “Lado C” não é o fim da coisa. O “Lado C” é a coisa, logo, pode muito bem ser o início! De uma grande amizade, por exemplo. Ou então do esquecimento. É provável que nunca mais vos veja. É possível que vos encontre noutro sítio, menos ambíguo, menos ambivalente, mais próximo. [São distribuídas folhas de contactos, com todas as informações relativas à minha pessoa e espaços em branco para os espectadores preencherem com os seus próprios dados. A partir do Verão de 2006, começo a publicar no blog testemunhos pós-espectáculo enviados pelos espectadores em vários suportes electrónicos e outros (e-mails, cartas, conversas gravadas). Dou à rubrica o nome “O espectáculo continua…”.] No entretanto, gostaria de vos propor o seguinte: não tentem encontrar a chave para a decifração daquilo que estão a ver naquilo que estão a ver. Há tanta coisa à volta! Pensem na razão de estarem aqui, naquilo que vos moveu, no que irão sentir a seguir, no porquê deste espectáculo estar a ser apresentado nesta sala, neste edifício, nesta cidade, neste Festival, e talvez descubram aquilo que tencionam descobrir. Não rejeitem à partida uma ciência que até conhecem: porque não se pode ser um bom crítico de culinária se não se gostar muito de comida. Na folha que acabaram de receber, encontrarão maneira de se safarem desta angústia. Sim, o espectáculo continua… Na previsão futura de um encontro futuro. Estão todos convidados a viajar comigo: um pé em Lisboa, o outro em Amares, e o resto é paisagem… Comecemos então por trocar contactos, ou seja, comecemos pelo início e não pelo fim, como mandam as boas tradições.

[Os espectadores são convidados a dirigirem-se à “Zona de Segurança”, onde se encontra um chariot com coletes reflectores amarelos e capacetes (preto para mim, cinzento para observador e artista convidados, branco para espectadores). Quando todos estão vestidos, coloco um rectângulo de cartão em cima cima da porta que dá entrada à divisão seguinte com a inscrição “Museu Imaginário”. Apresento de seguida todas as restantes divisões da casa “em construção”. Finda a visita guiada, faz-se um intervalo de alguns minutos. Eu espero os espectadores na sala. Quando chegam, em cada um é colocado um post-it amarelo com a palavra “ROGÉRIO” escrita a preto (eu incluído). À medida que tal vai acontecendo, leio a descrição de um jogo:]

Existe um jogo de grupo em que cada pessoa escolhe o nome de uma personagem, real ou fictícia, morta ou viva, actual ou passada, e cola um papel na testa da pessoa do lado com o nome dessa personagem escrito em cima. Cada jogador fica com uma personagem colada na testa, sem saber que personagem é, embora todos os restantes jogadores saibam que personagem é. O objectivo é descobrir, fazendo para tal perguntas (cuja resposta deve ser “sim” ou “não”) aos restantes jogadores. Ganha quem descobrir primeiro a personagem que lhe calhou. Outro objectivo deste jogo é propor uma abordagem lúdica a um qualquer fenómeno colectivo de alteridade: podes ser quem tu quiseres e eu aceito que assim seja, pois também estou incluído. Terás apenas de me provar que mereces pertencer ao grupo. Terás apenas de me provar que mereces o papel que tens colado na testa. Mais do que seres outro, passas a ser um igual a nós. E não há maneira de voltares atrás… Campo de concentração: se começarmos todos agora a contar Rogérios, adormeceremos de certeza antes do fim do espectáculo. Por isso, pergunto: entre mim e o Duchamp, existe o quê? [Pego num lápis preto de maquilhagem e desenho um pequeno bigode no local exacto que, na minha cara, lhe seria destinado. Pausa de 5 segundos. Olho cada um dos espectadores, espero respostas. Em 35 espectáculos, destaco: “Entre ti e o Duchamp existe um século”; “Entre ti e o Duchamp existe uma ponte sobre o Tejo”; “Entre ti e o Duchamp existe uma pessoa viva”; “Entre ti e o Duchamp existe um sentido de honestidade (tu tens, ele não)” e “Quem é o Duchamp”? Prossigo.] Gostaria de poder agradecer a vossa presença e a disponibilidade que tantos Rogérios manifestaram em participar neste projecto. O tema da nossa reunião de hoje é: “Que posso eu fazer para tornar a minha vida melhor?”. Aceitam-se ideias a partir de agora:

Por exemplo: aprender a respeitar mais as velocidades de pensamento do público, não o obrigando a apanhar grandes secas com espectáculos demasiado longos e palavrosos… Mais ideias por favor: [Em 35 espectáculos, anotei as seguintes sugestões: oferecer massagens aos espectadores; comprar ar condicionado; fazer um interlúdio lúdico para os distrair (por exemplo, uma fotonovela ao jeito de “Simplesmente Maria”); pôr almofadas nas cadeiras; incluir uma coreografia no espectáculo; inserir algumas peças de música clássica na banda sonora; ser mais poético e menos informativo; oferecer café; fazer um espectáculo sobre a vida de Brecht (na qual eu desempenho o papel de Brecht); assumir e aumentar o sotaque de Amares; comprar uns coletes reflectores mais fashionable; explicar a diferença entre trilogia e triologia; fazer uma festa no fim; fazer exactamente o mesmo espectáculo, mas sem texto; evitar ouvir as opiniões dos espectadores; fazer este brainstorming antes da refeição.]

Por exemplo: perder de uma vez por todas a mania de que não gosto de falar com programadores e directores de festivais, sem terem sido eles a interessarem-se pelo meu trabalho primeiro… Mais ideias por favor: [Em 35 espectáculos, anotei as seguintes sugestões: vender o meu trabalho a marketeers e não a programadores; comprar uma carrinha e fazer um “Vou A Tua Casa” itinerante país fora; ter mais amigos; emigrar; deixar de pensar como “artista”; mudar o título para “Vou À Tua Mesa”; contratar um manager; dormir (em vez de falar) com os programadores; deixar de fazer espectáculos; fazer dos espectadores os meus parceiros por excelência; confiar na “teimosa existência” — mais cedo ou mais tarde, virão eles ter comigo.]

Por exemplo: ter mais cuidado com a maneira como falo sobre os espectáculos. Às vezes disponibilizo demasiada informação, outras vezes peco por defeito… Mais ideias por favor: [Em 35 espectáculos, anotei as seguintes sugestões: pôr os menus das refeições online; fazer espectáculos especiais no pátio, com direito a vinho tinto e sardinhada; copiar o que os outros artistas fazem; fazer um projecto no qual o plano de comunicação é o próprio projecto em si; escrever: abaixo os posters, vivam os pins magnéticos! (para pôr no frigorífico); apostar (e acreditar) que qualquer fenómeno se espalha melhor de boca em boca.]

Por exemplo: assumir de uma vez por todas que preciso de arranjar um gestor de contas, pois sou péssimo a lidar com contabilidades… Mais ideias por favor: [Em 35 espectáculos, anotei as seguintes sugestões: subornar um contabilista; trazer comida congelada de Amares, para poupar dinheiro; fazer o espectáculo dentro de edifícios em construção da cidade, pedindo dinheiro (em troca de publicidade gratuita) às empresas de construção civil; comprar um porquinho mealheiro; pedir aos espectadores que paguem a comida à parte; vender retratos falsos do Marcel Duchamp; fazer uma versão do “Vou A Tua Casa” para televisão; mudar de vida; aprender a trabalhar com o Microsoft Excel; ir para o pátio todos os dias e ter ideias (é o melhor sítio da casa).]

Por exemplo: falta-me maturidade… Mais ideias por favor: [Em 35 espectáculos, anotei as seguintes sugestões: falta-me deitar abaixo algumas paredes; falta-me apanhar sol; falta-me arranjar umas sobrancelhas; falta-me incluir uma entrada no menu do almoço; falta-me comprar post-its de qualidade; falta-me uma chaleira eléctrica; falta-me criar um momento colectivo de catarse; falta-me jogar o jogo; falta-me pagar aos espectadores pela sua paciência; falta-me escrever sobre o que não sou; faltam-me os anos que ainda não vivi; falta-me esperar, mas não sentado.]

[Agradeço as dicas. Retiro do dossier dois envelopes brancos, anunciando que num se encontra uma carta que enviei ao artista plástico Thomas Hirschhorn em Dezembro de 2005 e na outra a resposta do mesmo, com data de Janeiro de 2006. Leio ambas:]

Amares, 27 de Dezembro de 2005

Caro Thomas Hirschhorn, acabei agora mesmo de chegar da tua Não-Escola [Referência à exposição individual do artista — “Anschool II” —, que esteve patente no Museu de Serralves (Porto) entre 5 de Novembro de 2005 e 5 de Março de 2006. Visitei-a na última semana de 2005.], e decidi escrever-te algumas palavras, que possam de certa forma explicar o impacto que as tuas ideias causaram em mim. Sabes que pouco me interessam as tuas preocupações filosóficas sobre a arte, a política e os museus. Na verdade, o que me surpreendeu foi a maneira como tu permitiste que o teu trabalho comunicasse com o espectador, dialogasse com ele. Abres um espaço de tal ordem absorvente, que é impossível para quem nele decide entrar não dialogar. E sabes que me interessa cada vez mais que esse diálogo exista, independentemente da importância que o seu “conteúdo” possa ou não ostentar. Pouco me importa que o diálogo seja sobre a tua relação de amor/ódio com os museus ou que seja sobre couves e batatas. Interessa-me a qualidade no diálogo. Interessa-me a justeza de um diálogo certeiro, sem empolações de egos ou tentativas de imposição de fetiches estéticos. Não gosto de artistas fetichistas. Gosto de artistas francos com a sua própria condição de artistas. Tal como não gosto de artistas que se levam demasiado a sério. Que são normalmente os artistas que acreditam que a arte deve ser uma alternativa à vida. E então perdem literalmente o sono durante o tempo em que embarcam nessa quimera absurda de transporem para o trabalho artístico aquilo que a vidinha comum não os deixa fazer. Interesso-me muito pouco por aquilo que é surpreendente e inovador na minha vida, por aquilo que “sai fora da rotina”. Adoro rotina. Sempre adorei. O que foge dela não pode entrar na performance — prefiro guardá-la no espaço do sonho. A tua arte-diálogo ajudou-me a concretizar em palavras, em diálogo, isto que acabei de dizer. Porque ser artista, implica também não o ser. Não acredito em talentos divinos, inteligências xamânicas ou cérebros iluminados. Gosto cada vez mais de artistas que têm uma vida, uma vida comum! Isso percebe-se ao primeiro momento de diálogo. Artistas contraditórios (e não controversos), porque a vida é contraditória, não é controversa. Gosto cada vez mais de artistas que não se importam de bater constantemente contra a parede, de forçarem becos sem saída, de se contradizerem brutalmente de cada vez que abrem a boca. Criticar os museus, as instituições, as formas e fórmulas de se criarem e de se apresentarem trabalhos artísticos são, sem dúvida, formas de amar os museus, de amar as instituições, de amar as formas e fórmulas de se criarem e de se apresentarem trabalhos artísticos. Eu não perco o sono pelo facto dessa contradição poder ser insolúvel: o trabalho deve dar prazer! Mas acredito com todas as minhas forças que a grande maioria dos criadores portugueses da minha geração são bastante mais inteligentes do que a grande maioria daqueles que sobre eles escrevem, daqueles que lhes compram os espectáculos, que os programam, que lhes dão dinheiro para trabalhar… Trata-se de um desequilíbrio difícil de definir, logo, difícil de contornar, mas por demais evidente. Isto diverte-me, não me perturba. No dia em que começar a ter insónias, deixo de trabalhar e vou plantar couves e batatas para a terra que me viu nascer… This is not a title, this is a signature: fuck the white cube!, fuck the black box!, I’m a life-specific!

Obrigado, Rogério Nuno Costa

.

Zurique, 23 de Janeiro de 2006

Caro Rogério Nuno Costa, em resposta à carta que me enviaste, permite-me que te responda de maneira telegráfica: só enquanto arte pode a arte ganhar importância e ter significado político. Quer-me parecer que tencionas praticar um exercício artístico em que faltas e erros não sejam importantes, em que o melhor não seja necessariamente bom. Concordo contigo. Na arte, não sou pela interactividade. Sou pela actividade de pensamento. É verdade que não existe um lugar ideal para a arte; o museu não o é, nem a rua, nem a galeria, nem a tua casa. Para trabalhares num espaço público, tens forçosamente que concordar com o espaço público. Só se concordares com o espaço público é que poderás colaborar. E é portanto igualmente forçoso que tenhas que colaborar com a realidade para poderes mudá-la. A arte tem de enfatizar, afirmar e defender a sua própria certeza, desinteressadamente. Tornar uma coisa grande, ampliada, não lhe confere importância. Ampliar uma coisa não a torna importante, mas sim comprometida. E, simultaneamente, (a ampliação) torna-a vazia. Queres fazer a tua arte sem ilusões. Queres ter esperança. Esperança não enquanto sonho ou escape. Esperança enquanto diálogo e confrontação. Como artista, por vezes, sinto-me ridículo quando olho para o meu trabalho. Mas tenho que me confrontar com esse ridículo. E tu também. Compreendo que queiras incluir pessoas e trabalho num público não exclusivo. Desejas que a tua obra crie condições para o confronto entre ela e o público, mas sem neutralizá-lo. Gostaria que pudesses pensar na universalidade da arte, que na arte não há limites para a compreensão ou para a não compreensão. Eu próprio não “compreendo” a arte e a filosofia. Mas é isso que quero abordar, combater, atingir e afectar. Tal como quero resistir à facilidade da mera opinião, à confortável e luxuosa opinião. Tenho que combater a ideologia do que é permitido, a boa consciência, a lógica do cultural e a ideologia da teoria do politicamente correcto. Quero trabalhar em excesso, mas também com precisão. Quero trabalhar em sobrecapacidade. Deves compreender bem o que digo, tal como deves aceitar, sem dramatismos idiotas, que fazer arte é um acto de solidão. Esse acto de solidão nada tem a ver com auto-isolamento narcisista ou repressivo. Essa solidão é a tua maneira de resistir. Resistir à tendência para tornar as coisas bonitas. As coisas não têm que ser mais bonitas do que são… Pelo que me dás a perceber, tu não persegues as grandes causas, não gostas de tornar teus os grandes textos, as magnas sabedorias, os sábios ensinamentos. Na verdade, tens medo disso tudo. E tens uma tendência atroz para confiar mais na filosofia imanente à tua própria existência do que nas minhas concepções filosóficas sobre o mundo e a arte. Não tens nada a dizer como artista, o que não invalida que o sejas! Parece-te justo, portanto, catalogares-te como não-artista. Mas para que não te restem dúvidas, e mesmo que isto te pareça deslocado, não podes deixar de admitir esta tua não-catalogação como o teu primeiro (na verdade o teu único) grande dogma. Nesse sentido, e só nesse, deves ser cruel. Cada vez mais mais cruel. Mas deves ser cruel contigo próprio primeiro.

Até à próxima, Thomas Hirschhorn

[É projectado um último slide com o título “Documentos em Falta”, que imediatamente faz suceder o vídeo que fecha o espectáculo:]

.

[Retomo:] Não gosto propriamente de ter uma vida dupla. Já me chega ser do signo Gémeos… A pessoa que sou em Amares é melhor. Por isso, vou-me embora. As próximas reuniões continuam na distância. E o espectáculo continua onde quiserem. Amigos serão sempre amigos: The show must go on… We will, we will rock you… Nada nos irá parar!

Fim do texto.

[Termina a reunião. Convido os espectadores a levantarem-se e a juntarem-se para uma foto de família, ao som de “Nothing Will Stop Us Now”, dos Starship (1987).]

.

BACK HOME